Tem sido crescente o número de decisões em nossos tribunais em relação ao abandono afetivo e a indenização por dano moral que os esquecidos pelos próprios genitores vêm recebendo. Imperdoável, inexplicável e de crueldade ímpar, o abandono fere a estima da vítima por lhe negar acesso à identidade de família, acesso à ancestralidade. Como diria Lacan, o pai é a lei. Assim, o pai que abandona também é a lei que desabriga, que desconhece. E a nação na qual os abandonos são recorrentes é, por excelência, uma nação onde a lei não é cumprida, como no caso brasileiro.
Avanço considerável na questão da família, há, entrementes, uma questão de futuro a ser abordada. Pelo artigo 1.694 do Código Civil Brasileiro, a reciprocidade da prestação de alimentos é inafastável. Assim, aos pais, se necessitados, é estendido o direito de requerer alimentos dos filhos.
Na hipótese do filho – que não teve nem as necessidades emocionais e, muito menos, as materiais atendidas por seu genitor(a) – apresentar boa condição financeira na maioridade, terá que fornecer alimentos ao pai ou a mãe se esse necessitar, ainda que o tenha abandonado. Além de superar os maus tratos da infância e adolescência para estabelecer-se como cidadão, o filho passa a ser responsável pelo amparo material àquele que lhe causou tais danos. Recusado e rejeitado, é obrigado a socorrer quem deveria ter-lhe protegido.
É necessária a alteração do texto legal e sua adequação ao contexto social condicionando tal direito à reciprocidade. Quem não ampara, protege e cria, não pode ter o direito de requerer para si tais prerrogativas, pela simples lógica, pelo thelos da lei em estabelecer o princípio mais elementar: igualdade entre os iguais, desigualdade entre os desiguais.
A manutenção de tal dispositivo nos termos ora postos significa, pelo Estado – que tem o dever de garantir proteção a crianças e adolescentes, a ratificação do abandono afetivo. Significa sobrecarregar o futuro da criança abandonada pelo genitor, impor-lhe uma dupla carga emocional, pois a obriga desigualmente. Se o Estado não foi eficaz em garantir ao menor o direito ao amparo moral e material, não pode sê-lo para exigir que ele ampare quem lhe impôs tal dano. Mesmo a efetivação da indenização por dano moral não tem o condão de justificar tal obrigatoriedade. Isso porque o dinheiro não repara a falta de afeto, não torna pai ou mãe quem decidiu não ser.
Isabel Cochlar, advogada