O Facebook e o Twitter foram as ferramentas que os cidadãos islandeses usaram para opinar sobre a nova constituição do país. Pelas redes sociais e pelo site oficial do conselho criado para fazer a redação do documento, as pessoas sugeriram itens, opinaram sobre mudanças e participaram da primeira legislação colaborativa. Um dos membros do órgão, Eiríkur Bergmann esteve em Porto Alegre na quinta-feira e contou detalhes da iniciativa, o que deu certo e errado, e como a experiência pode ser replicada no Brasil.
Bergmann é especialista em política e professor da Escola de Ciências Sociais da Bifröst University. Mas ele também é membro do Conselho Constitucional da Islândia, de quem partiu a iniciativa de abrir ao crowdsource a redação de uma nova constituição – a atual é de 1944, quando o país ficou independente da Dinamarca.
Em Porto Alegre para o Conexões Globais – evento da Secretaria de Inclusão Digital sobre mobilização popular na internet -, o professor disse que a web é uma nova ferramenta para a participação cidadã nos governos democratas. Bergmann acredita não em um novo modelo de democracia, mas em um desenvolvimento dela, para que se alcance um nível mais avançado do sistema política. E a participação, para o professor, é o caminho para chegar lá.
“Estivemos esperando muito tempo, enquanto a tecnologia já existia, mas agora é a primeira vez que ela está desenvolvida e expandida o bastante para que realmente se possa usá-la (para a política)”, avalia. “A população não estava pronta”, continua.
Mais do que as pessoas, para Bergmann, seria preciso que os governos estivessem prontos. Ele menciona a falta de vontade dos políticos tradicionais de “dividir o poder” com os cidadãos. “Os políticos em geral não têm pressa, os cidadãos devem pressioná-los”, incentiva.
A origem da ideia
A Islândia estava em um contexto favorável, destaca o professor, por ter penetração de quase 95% de internet, um povo desiludido com a política e no limite por causa da crise de 2008. Foi nesse ano que houve a “Revolução das Panelas e Frigideiras” – pacífica -, quando os utensílios de cozinha viraram batuques e a população foi exigir, em frente ao parlamento, uma postura diante do colapso econômico.
Os políticos criaram então a Comissão Constitucional, atendendo demanda da população. “Poderíamos ter entrado, desligado nossos smartphones e só saído de lá quando terminássemos. Mas resolvemos fazer exatamente o oposto”, conta Bergmann, um dos 25 eleitos entre 500 candidatos da sociedade civil.
A equipe técnica criou Facebook, Twitter, site “e todas essas coisas” para apoiar a ideia de uma constituição colaborativa. “Além de ler os comentários nas redes sociais, publicávamos tudo o que escrevíamos, mesmo se não estivesse completo ainda. As pessoas opinavam e conseguíamos revisar e melhorar”, explica.
Embora o contexto brasileiro seja diferente, em especial em relação à quantidade de cidadãos com acesso à internet, a participação poderia se tornar realidade. “O Brasil tem uma herança muito, muito interessante de participação (do povo). Temos o exemplo de 1989, que se espalhou em todos os lugares (do País), e as audiências públicas. Me parece que há ao menos uma parte da população brasileira que participou em exercícios democráticos desse tipo”, exemplifica.
Mas nem tudo foram flores no processo da Islândia, pondera o professor sobre os erros do caminho. “Ficamos meio divididos, como se fosse o conselho e o povo de um lado e os políticos tradicionais do outro, o que gerou uma animosidade. Não devíamos ter feito essa divisão”, avalia. Para ele, uma maior cooperação entre as pessoas e os legisladores teria funcionado bem melhor.
Com apoio do povo
Bergmann reforça que, em qualquer lugar, vai ser com a força do povo que iniciativas como a da constituições com crowdsource vão surgir. “Muitas dessas experiências fracassam porque os políticos não querem dividir o poder”, reforça.
Para o professor, a tentativa funcionou na Islândia porque o descontentamento do povo era muito grande. Para ele, os cidadãos que estavam céticos em relação aos políticos tiveram “um senso de pertencimento e importância” ao participar da redação da nova constituição de seu país.
O membro do Conselho Constitucional conta que a participação foi levada a sério, ao contrário do que normalmente se vê na Islândia em debates políticos, onde reclamações e xingamentos dão o tom dos comentários sobre o tema. “A grande maioria das participações não tinham esse tom negativo”, relata. Para ele, a diferença foi a responsabilidade que aflorou nos usuários uma vez que perceberam que estavam, sim, sendo ouvidos. “Em geral o que eles dizem (em posts de blogs ou notícias de sites) não têm importância, então eles não se responsabilizam. Mas quando você dá o poder às pessoas, quando elas sabem que suas vozes estão sendo ouvidas, elas agem com muito mais responsabilidade”, avalia.
“Ainda estamos em um estágio muito novo de uso da tecnologia para a participação política”, afirma Bergmann. Para ele, outras experiências assim vão surgir em diferentes países – como já surgiram no Canadá, na Bélgica e na Irlanda, por exemplo – e que o próximo passo será sistematizar a participação da população nas decisões políticas. O professor reforça que a ideia da Islândia abre possibilidades, muito mais do que criar um modelo de participação. “As necessidades de cada povo são diferentes, é preciso fazer adaptações”, diz.
Na Islândia, as principais sugestões recebidas se relacionavam a direitos humanos, ao sistema de energia e à manutenção dos recursos naturais como propriedade do estado. Mas como seriedade não implica em falta de bom humor, Bergmann conta que algumas sugestões também sugeriam que a nova constituição permitisse “fazer coisas malvadas aos banqueiros”, ri o professor, usando eufemismos.
A proposta de constituição preparada com a ajuda dos cidadãos pela internet ficou pronta no final de 2012, e foi aprovada em média por dois terços da população que participou do referendo sobre o tema. Mas, chegando no parlamento, o texto não passou. Agora há outra legislação e a indefinição continua. “Mas esse governo não vai ficar aí para sempre”, conclui Bergmann, indicando que a vontade do povo manifestada no documento pode, no futuro, vir a ser adotada pelos legisladores.
Fonte: Revista Nacional de Direito (SP)