Quando aquela parte do gigante que tranquilamente dormia e voltou a dormir em berço esplêndido acreditou ter acordado (o que não passou de um ataque de sonambulismo, numa reação imprevista da vacina manipulatex, inoculada por quem tem poder para isso – principalmente o “quarto poder”), muitos apostaram em grandes mudanças no exercício da cidadania e no aprofundamento da democracia, incluindo, por óbvio, a questão da representatividade política. Ao que me parece, ledo engano.
Com a exceção da discussão sobre os valores e custos do transporte coletivo (provocado por um grupo de pessoas articuladas e organizadas com essa finalidade específica – Movimento Passe Livre e Bloco de Lutas), nenhum outro fato pode ser creditado como conquista daquele movimento das ruas. De impacto, é verdade, a rejeição da PEC 37 (competência de investigação criminal do Ministério Público) não como conquista das ruas, mas pela forte e organizada articulação dos membros do Ministério Público, além da maciça campanha feita pela mídia, que enxertou essa bandeira nas manifestações de rua, onde foi defendida às cegas.
Nos últimos dias, ocorreu uma reação do Congresso Nacional que parece ter ouvido a voz novamente silenciosa das ruas. Sim, porque o que restou foi a demonstração da incapacidade de uma articulação de massa organizada que, efetivamente, possa ter uma consequência concreta no sentido do avanço cidadão e democrático para além de uma mera onda estética e passageira.
Parte dos congressistas (é de frisar o “parte”, pois é necessário tentar superar o maniqueísmo de que todos os “políticos” são ruins e nós – não políticos – somos os bons) aprovaram o chamado orçamento impositivo, que impõe que o Governo Federal libere, incondicionalmente, as chamadas Emendas Parlamentares. Com a aprovação dessa proposta, cada um dos congressistas (deputados federais e senadores) terá, individualmente, acima de R$ 10 milhões em Emendas para usar, indiscriminadamente, ou seja, sem qualquer critério e planejamento prévio.
Isso significa que esses valores estão à disposição dos parlamentares para eles praticarem o verdadeiro “toma lá da cá” com os prefeitos e vereadores de suas “bases” eleitorais, disponibilizando recursos públicos em troca de apoios eleitorais em um verdadeiro clientelismo político (desconsiderando também a porta aberta para a prática da corrupção). Não é por outro motivo que grande parte dos próprios prefeitos já se deu conta do resultado nefasto dessa prática e quer a extinção das Emendas Parlamentares, pois aquele que não é “amigo” do parlamentar fica sem esses recursos.
Essa prática também subverte a própria função de cada um dos poderes da República, já que cabe ao Executivo a gestão do orçamento e dos recursos públicos e não ao Legislativo; cabendo a este a função legislativa e fiscalizadora.
Porém, ficando apenas na questão eleitoral (e de sua reforma que não acontece), não resta dúvida de que com o poder dos parlamentares disporem de parte dos recursos públicos para serem destinados, conforme a sua própria vontade, estabelece um privilégio eleitoral destes em relação aos demais candidatos, pois partem de um considerável valor de recursos públicos para verdadeiras “negociações” em troca de apoios eleitorais, em um desvirtuamento dos princípios que regem um Estado democrático. Com isso, se perpetua um processo eleitoral desigual e com vícios da pior espécie, para dizer o mínimo.
Portanto, questões importantes como as reformas tributária e a política-eleitoral (a forma do financiamento das campanhas eleitorais se mostra uma das questões mais importantes) são proteladas, ad infinitum, pela maioria dos parlamentares que entenderam que o gigante apenas esporadicamente ruge, enquanto que urge a reeleição de cada um deles e os recursos públicos das emendas são um ímpar cabo eleitoral.
Edson Luís Kossmann
Dallagnol Advogados Associados