Com a tragédia ocorrida em janeiro na boate Kiss, em Santa Maria, veio à tona a questão da falta de estoque de pele. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), em 2012 foram realizados 7.426 transplantes de órgãos – incremento de 8,27% em relação ao ano anterior -, 1.753 de medula óssea e 38.522 de tecidos no País. Todos os procedimentos são custeados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Na divisão por estados, São Paulo lidera o ranking, seguido de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Ceará. Porém, em números relativos de habitantes por doadores, o primeiro é Santa Catarina, depois vêm Distrito Federal, Ceará, São Paulo e Rio Grande do Sul. O transplante de rim é o mais realizado no País, respondendo por 5.285 das operações. Foram 1.595 intervenções cirúrgicas de fígado para proporcionar melhor qualidade de vida de brasileiros enfermos e 226 transplantes de corações em 2012.
O cirurgião cardiovascular do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul Álvaro Albrecht reclama muito da falta de estrutura de um modo geral, da carência de equipamentos nos hospitais do interior do Estado e da ausência de doadores. “Temos muito poucos doadores. Seríamos capazes de realizar muito mais transplantes se houvesse mais doadores. Quem está na fila de espera por córnea pode esperar mais do que quem está na fila de coração”, compara.
Segundo Albrecht, os hospitais nas cidades pequenas e médias são, geralmente, administrados por entidades filantrópicas, que não disponibilizam o equipamento que mantém a vida após a morte cerebral. “É uma linha muito tênue entre manter o corpo vivo após a morte cerebral e se perder os órgãos”, alerta.
Em relação a transplantes de tecidos, que tiveram um crescimento por causa da tragédia de Santa Maria, quando houve necessidade de incremento do estoque do Banco de Pele, o crescimento foi maior. A Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre recebeu doações de hospitais de outros países como Uruguai, Chile e Argentina. “Estamos com mais doadores por causa de Santa Maria. Um grande queimado precisa retirar a pele necrosada e colocamos o tecido doado no local. A pele é rejeitada pelo ferido, mas ajuda na cicatrização da pessoa até que possamos fazer o autoenxerto, utilizando pele de outra parte do corpo”, explica o diretor do Banco de Pele da Santa Casa de Misericórdia, Eduardo Chem. As pessoas precisam informar à família que pretendem ser doadoras de pele.
O Hospital Banco de Olhos (HBO), de Porto Alegre, atingiu a marca de 58 transplantes de córneas apenas no primeiro trimestre de 2013. Esse é o maior índice nos últimos quatro anos para o período – sendo 50 em 2012, 43 em 2011 e 23 em 2010. O coordenador da equipe de transplante de córneas do HBO, Roberto Freda, acredita que o crescimento constante é resultante da campanha. “Todo mundo merece ver a vida” – que contribui para elevar esse número – e também a recente inclusão de mais quatro médicos na equipe do hospital, que já conta com 31 profissionais credenciados.
A consequência desse aumento é a queda na fila de espera por transplante no Rio Grande do Sul, que até o início de abril deste ano chegou a 132 pacientes, conforme a Central de Transplantes da Secretaria Estadual da Saúde. Em dezembro do ano passado, a central contabilizou 143 pacientes na espera pelo procedimento cirúrgico, uma redução de 85% em relação a 2009, quando esse número fechou em 930 pacientes.
Uma das contribuições para esse recuo nos últimos quatro anos foi a campanha de conscientização sobre a importância da doação de órgãos para salvar vidas, que teve a primeira edição em 2009.
À espera de um coração
A mensagem que a comerciária Kátia Souza Nunes, 42 anos, passa é de esperança e perseverança. Oriunda de família com histórico de doenças cardíacas, ela percebeu a hipertensão quando tinha 27 anos. O anticoncepcional aumentava seus problemas de saúde. “O meu filho, que tem 16 anos, nasceu porque tive que parar com a pílula. A tabelinha falhou e engravidei. Depois que ele nasceu tive que fazer ligadura, mas os sintomas de hipertensão não diminuíram”, explica.
O primeiro infarto, em abril do ano passado, foi em casa e Kátia teve de ser socorrida pelo marido, Paulo Fernando Nunes. Ele teve de ficar no vai e vem de hospital a hospital e acabou perdendo o emprego. Hoje, Nunes trabalha como autônomo para ter disponibilidade e levar Kátia aonde ela precisar. “Eu tinha um plano de saúde, perdemos isso depois que ele foi demitido. Fiquei quatro meses sem atendimento até que encontrei o médico Johnny Wong. Ele me recomendou o Instituto de Cardiologia”, informa Kátia.
A comerciária está usando um desfibrilador para evitar paradas cardíacas, mas isso lhe causa transtornos quando vai a estabelecimentos comerciais. “É um tipo de preconceito. Teve gerente de loja que não quis desligar o detector eletrônico na porta de acesso e tive que ficar do lado de fora. Mas, se passo por um desses, corro o risco de descarregar a bateria e morrer”, afirma Kátia Nunes.
Há uma semana na fila de espera pelo por um coração, a comerciária se considera serena. “Eu estou bem tranquila em relação ao transplante. Os meus amigos não entendem como estou tão calma. Até dezembro vou trocar o meu coração. Jamais chorei por pena ou por medo dessa situação. Estou feliz, isso resume tudo”, completa Kátia.
As lições de um recomeço
A vida do comerciante Nelson Khalil não mudou após o transplante de coração, realizado em setembro de 2011, mas sim ao ter dois infartos, em 2005, e precisar realizar duas pontes de safena. Quando a vida ficou por um fio foi que Khalil se deu conta que precisava se dedicar mais à família do que à carreira profissional. “Ao sofrer o primeiro infarto, comecei a lidar com a possibilidade de morte. A gente começa a perceber que a parte profissional é menos importante”, conta.
A neta Yasmin, 7 anos, é fruto da declaração que ele fez no hospital. “Eu disse que o meu único sentimento era o de vir a não conhecer meus netos. A minha nora engravidou em seguida que deixei o hospital”, relata. Khalil lembra que todas as atividades para quem tem problema cardíaco vira uma tarefa árdua.”Sentia-me cansado até durante uma refeição. A vida deixa de ter gratificações e passa a ser só ônus. A espera é uma mistura de sentimentos: preocupações com a família e esperança de continuar vivo”, comenta.
Precisou enfrentar a fila de espera por um coração durante seis meses. Depois da cirurgia, a reação de Khalil em relação à dor foi um momento de alegria. “Entrei na cirurgia com entusiasmo total e acordei com dores. Fiquei feliz por ter dor, de ter acordado com aquele sentimento de renascimento”, lembra o comerciante.
O apoio da família e o atendimento hospitalar por parte de enfermeiros, médicos e funcionários tornou a recuperação de Khalil uma dádiva. “Não tenho palavras para agradecer todo o carinho recebido. Eu não conheço a família do doador. Geralmente, na hora da morte é difícil fazer a doação, mas a revolta com a morte passa logo. Se não ocorre a doação, a pessoa vai ficar com a sensação de que seu ente querido morreu à toa, porque não ajudou outro a viver”, completa.
Fonte: Jornal Correio do Povo (RS)