Coube à advogada e diretora do IARGS, Liane Bestetti, proferir a última palestra do ano do Grupo de Estudos de Direito de Família, hoje, dia 08/11, no instituto, sendo recepcionada pela diretora do grupo há mais de 40 anos, Dra Helena Ibañez. O tema escolhido pela advogada foi “Novas Composições Familiares e as questões de gênero: o amor em tempos líquidos”, utilizando-se de recurso cinematográfico, a fim de fazer um contraponto da década de 50 com o mundo líquido atual, incluindo cenas de filmes estrangeiros e séries brasileiras para servir de exemplos às mudanças das relações humanas.
O termo “líquido” utilizado pela Dra Liane foi justamente para evidenciar que nada é permanente, além da capacidade do ser humano à adaptação no que se refere às relações amorosas. Afirmou que existem outras possibilidades de amor, além da necessidade de respeito às escolhas.
De acordo com a advogada, não se pode falar nem de presente e nem de futuro sem citar o passado, começando pela Constituição Brasileira, na qual, disse, foram demarcados os princípios que oferecem base às novas famílias, a partir de sua promulgação, em 1988, priorizando a dignidade da pessoa humana, o princípio da liberdade e da igualdade (com a paridade de direitos entre cônjuges e companheiros).
Passados quase 30 anos, Liane identifica muitos avanços no âmbito do Poder Judiciário. Na sua avaliação, a presença do afeto foi determinante ao longo deste tempo como elemento natural às relações familiares.
Dentro do contexto família, sendo o “núcleo de pessoas unidas por laços afetivos”, a advogada informou que existem, atualmente, seis constituições reconhecidas: família matrimonial, família monoparental, família extensa ou ampliada, família anaparental, família homoafetiva e família multiparental.
Na família matrimonial, instituída pelo casamento com estritos padrões de moralidade, Liane exibiu parte da série americana “Papai Sabe Tudo”, da década de 50, para mostrar a visão do país de como seria a família ideal – na qual tudo é previsível, ou seja, todos os dias acontecem as mesmas coisas.
Em seguida, citou a família monoparental, constituída por qualquer um dos pais e seus descendentes, uma das inovações trazidas pela Constituição de 1988. Referiu, também, a família mosaico, formada pela pluralidade de relações parentais advindas de outros casamentos. “A família mosaico, entretanto, não exclui a monoparental, pois o vínculo do genitor com seu filho continua sendo o mesmo, ou seja, o novo casamento não desvincula os direitos e deveres com relação aos filhos”, explicou.
Já a família extensa ou ampliada, disse, é uma inovação trazida pela Lei 12/01/2009, a chamada Nova Lei da Adoção, que visa a assegurar o vínculo afetivo entre a criança e seus familiares. “Na vida prática, poderia se dizer que nas questões de guarda e adoção haveria uma prevalência dos familiares no exercício da guarda ou da própria adoção”, frisou. Como exemplo, exibiu a série brasileira “A Grande Família”, onde todos os familiares residiam na mesma casa.
A família anaparental foi citada para identificar a inexistência da figura dos pais, ou seja, constitui-se basicamente pela convivência entre parentes pelo vínculo na colateralidade ou convivência entre pessoas sem vínculo sanguíneo que formam uma entidade familiar pelo elemento da afetividade. Como exemplo, citou a convivência entre amigos, sem conotação amorosa, ou irmãos, que passam a conviver juntos formando uma entidade familiar própria.
Na família homoafetiva, constituída pela união de duas pessoas do mesmo sexo, Liane Bestetti citou o artigo 226 da Constituição Federal, a qual não elencou este tipo de união como entidade familiar, “silenciando uma realidade fática social”. Lembrou que, até poucos anos atrás, a doutrina se dividia: “Uns entendiam que a união homoafetiva não se constituía em entidade familiar, mas apenas uma sociedade de fato e outros em atenção aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da igualdade defendiam a união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar”.
Todavia, observou que a controvérsia foi superada no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (AID nº 4.277/DF), que conferiu ao artigo 1.723 do Código Civil de 2002 a interpretação conforme a Constituição para dele excluir todo significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar. “Dessa forma, o STF reconheceu a união homoafetiva como entidade familiar, o que já vinha sendo feito pelos Tribunais Estaduais”, destacou.
Posteriormente, acentuou, o STJ acolheu a conversibilidade de uma união estável entre duas mulheres em casamento ao fundamento de que inexiste de vedação expressa a que se habitem para o casamento pessoas do mesmo sexo. “Vedação implícita constitucionalmente inaceitável”, afirmou.
Logo depois, citou a adoção por casais homoafetivos, lembrando que o Supremo já se manifestou em decisão de Relatoria Ministra Carmen Lucia, autorizando a adoção de uma criança por casal homoafetivo, tendo a Ministra dito em seu voto que: “Se as uniões homoafetivas já são reconhecidas como entidade familiar, com origem em vínculo afetivo, a merecer tutela legal, não há razão para limitar a adoção, criando obstáculos onde a lei não prevê.”
Na sequência, Liane expôs o vídeo que retrata a campanha denominada “Nossa família é assim”, veiculada pela internet, no ano passado, evidenciando os mais diversos tipos de uniões familiares.
E, por último, mencionou a família multiparental que, diferentemente do modelo tradicional, reconhece a possibilidade de um filho ter mais de um pai ou mais de uma mãe. “Reconhece-se a multiparentalidade nas adoções (conjuntas ou unilaterais), nas hipóteses de reprodução assistida, de casais hetero ou homoafetivos”, afirmou Liane, ressaltando que esse tipo de família tem sido reconhecido pelo Tribunal por meio de ementas dos julgamentos mais recentes.
Ressaltou, em seguida, dois outros tipos de relações: uniões paralelas e o poliamor. Advertiu, contudo, que tais relações não devem ter o crivo de certo ou errado, do moral ou imoral. “Esses são conceitos internos e dizem com o sentir de cada pessoa”, assinalou.
Uniões paralelas, explanou, são duas uniões mantidas simultaneamente, normalmente por um homem e duas mulheres. “Trata-se de duas famílias distintas, com ou sem prole”, disse, especificando que, no caso, podem ser baseadas em uma união estável e um casamento ou duas uniões estáveis. Realçou que o Judiciário tem visto esta questão com bastante cautela, na medida em que o Brasil é regido por monogamia e não por poligamia.
Liane conceituou poliamor como uma relação afetiva na qual concorrem mais de duas pessoas, sendo que todos os envolvidos têm conhecimento e consentimento. “É o oposto da monogamia, mas não se confunde com bigamia, que é crime e pressupõe o casamento”, salientou, acrescentando que as relações poliafetivas não são reconhecidas pela legislação brasileira.
A fim de melhor evidenciar este tipo de relação, Liane Bestetti exibiu partes da série brasileira chamada “Armação Ilimitada”, da década de 80, na qual apareceu a primeira relação de poliamor entre uma mulher e dois homens. Na sequência, apresentou, também, uma parte do filme francês “Os sonhadores”, de 2015, retratando a mesma realidade.
Logo depois, a advogada citou o novo movimento mundial que não se configura uma nova formação familiar: transgêneros, que é a não identificação da pessoa com o sexo que nasceu. Para tanto exibiu dois trechos de filmes: “A Garota Dinamarquesa”, que recentemente concorreu ao Oscar, reproduzindo um caso real de um casal, ambos pintores: “a mulher pede ao marido que pose como modelo feminino e, a partir de então, ele passa a não mais reconhecer o corpo masculino, mas sim o de uma mulher que ele batiza de Lili”.
O outro filme exibido foi da década de 50 intitulado de “Quanto mais Quente Melhor”, estrelado por Marilyn Monroe, Tony Curts e Jack Lemon, no qual existe um falso transgênero (um home se vestia de mulher).
Para finalizar, Liane Bestetti citou um trecho do livro da escritora Lya Luft, “Pensar e Transgredir”: “A vida há de nos cobrar duramente por considerarmos pecado o amor que não se enquadra em nossa visão mesquinha; por querermos medir comportamentos segundo nossos padrões pouco generosos; por querermos prender, humilhar, podar todo o relacionamento que não se adapta à medida da nossa ignorância e dos nossos farisaicos valores. Porque o amor, do jeito que pode ser, é o caminho da liberdade e da grandeza – é a nossa única possibilidade de salvação”.
Nas considerações finais, com a participação do público, o bancário Lucimar Quadros falou sobre a trajetória da adoção do menino João Vitor Quadros Gerhardt, junto com o consultor Rafael Gerhardt, com quem mantém união homoafetiva há 20 anos. Na oportunidade, Lucimar relatou o processo de adoção de João Vitor por meio de uma decisão judicial inédita no município de Gravataí (RS), quando a criança tinha apenas três meses de idade. Citou, ainda, a decisão pioneira que teve repercussão nacional e internacional: a concessão de licença maternidade de 120 dias para ele. Hoje João Vitor tem seis anos. Recentemente ele lançou o livro “Amor sem Preconceito”, na Feira do Livro de Porto Alegre, escrito pela jornalista Tatiana Gomes.
Terezinha Tarcitano
Assessora de Imprensa