Em minha infância e adolescência vivi incontáveis alegrias e algumas tristezas tão profundas que me fizeram acreditar que, dentre as amigas, eu era a única que sofria de verdade. Bem adulta, adotei uma frase que ouvi, mas não lembro a autoria: esgotei minha quota de sofrimento na infância. Tristezas e decepções vêm e virão. A questão é (tentar) sofrer estritamente quando é o caso, e não assim à toa como a gente faz, ou porque há várias coisas estragadas em casa e não sabemos a quem recorrer para consertá-las, porque o carro – um tanto rodado – previsivelmente veio a quebrar, ou simplesmente porque está quente demais.
Passando uns dias de férias no escaldante verão porto-alegrense e tentando não praguejar diante desse desconforto térmico, mentalizei dias de puro luxo como protagonista de uma maratona cinematográfica climatizada. Iniciei com um filme em cartaz já há algum tempo, o surpreendente Álbum de Família, dirigido por John Wells. Notável o esmero do diretor em retratar (quase) tudo que se possa imaginar em termos de relações familiares conturbadas. Fiquei perplexa. Muitos nós na garganta (não queria chorar!). Muitos ataques de risos coletivos, na maioria das vezes provocados pela desconcertante sensação de inquietação na alma.
Fiquei repassando essa película pontuada por exímias – teatrais na dose exata – interpretações. Não deu pra escolher quem estava melhor em seu papel. Para ficar apenas com alguns, há o pai, ex-professor, poeta e alcoolista desiludido; ou a matriarca pretensamente forte, cínica e desesperada, querendo impor “verdades” a todos. A tia, que se reconhece como velha e gorda, revela que já foi profundamente sedutora – continua inteligentemente bem-humorada. Isso sem falar na afetiva e destemida empregada recém-contratada (autodeclarada descendente da tribo indígena Cheyenne); da adolescente fora dos padrões aceitáveis (ainda há tais padrões?), e das três irmãs que compartilharam tantas coisas juntas e se saíram, ao final, tão singulares.
É disso que eu gosto: de filmes que nos convidam (obrigam) a pensar sobre as nossas próprias relações familiares e como lidamos com os inevitáveis conflitos. Não há como não identificarmos, em nosso próprio Álbum de Família, situações e personagens similares, ainda que o grau de beligerância e insanidade possa variar. Mais não vou contar. Depois do que vi nessa obra de arte, posso adiantar que minha infância e adolescência não foram tão sofridas assim.
Marta Leiria Leal Pacheco
Procuradora de Justiça do Estado do RS