Quando os colonizadores europeus colocaram seus pés em terras brasileiras, e aqui fincaram estacas como se até então fosse terra de ninguém, também nos impuseram uma formação cultural alienígena, importada daquelas plagas. Assim, de certa forma, a sociedade e o Estado brasileiro são resultados de um histórico processo de importação, imposição e adaptação da cultura social, política e econômica europeia, principalmente aquela da Península Ibérica, de onde vieram os colonizadores dessa terra.
Uma das características culturais que nos foi imposta foi a de que o Estado não possuía delimitações de fronteiras entre o público e o privado, ou seja, que a prática da utilização dos recursos fossem pessoais ou do Estado de forma indistinta, tanto para a satisfação de seus interesses pessoais como para aqueles que efetivamente fossem assuntos do Estado. Assim, o Estado acabava se tornando patrimônio próprio de seu governante e dos funcionários do reino.
O enraizamento dessa cultura (também chamada de patrimonialista) é de tamanha profundidade, embora suas origens sejam muito remotas o tema continua sendo extremamente atual. Tanto que é motivo de inúmeras manifestações sociais, sejam elas de caráter individual, de grupos ou nos meios de comunicação social. Com frequência vemos alguém protestando ou denunciando a utilização dos recursos públicos como se fossem particulares (e não são poucas as denúncias, pois já deixaram há muito de ser apenas um filete de água e viraram “cachoeiras”, com o perdão do trocadilho).
Por outro lado, também não se pode desconsiderar, e isso, ao meu ver, é o mais importante, que mecanismos sempre são criados com o objetivo de diminuir a sangria e punir os culpados. Há poucos dias uma comissão de notáveis juristas apresentou uma proposta de criminalização do enriquecimento ilícito, ou seja, cadeia para quem não conseguir provar que a sua riqueza foi adquirida de forma lícita.
Não restam dúvidas de que, em primeiro momento, tal proposta se mostra muito simpática aos olhos da sociedade, porém, como é uma ideia inicial, algumas questões ainda precisam ser bem mais discutidas, sob o risco de se cair, involuntariamente, em um canto de sereia. Acredito que uma das questões que se mostra mais preocupante seja a possibilidade da inversão do ônus da prova, ou seja, caso o Estado, por meio de seu aparato e mecanismos de investigação não conseguir provar que a riqueza de determinado cidadão seja ilícita, cabe a ele (cidadão) provar que é lícita. Ok, tudo bem, parece simples e salutar, porém, indubitavelmente, afronta a regra constitucional que estabelece que ninguém pode ser considerado culpado sem prova em contrário. Portanto, conforme a Constituição brasileira, cabe ao Estado provar a culpa e não ao cidadão provar que não é culpado.
É verdade de que, contra essa preocupação, poderia haver uma admoestação reafirmando a necessidade de penalização daqueles que se utilizam da prática do mal feito contra o Estado, e que seria somente uma exceção a regra constitucional. Bem, é verdade, porém, se não se tiver muito cuidado, as exceções viram regras e o aprofundamento dessas exceções levaram nações inteiras a Estados autoritários e totalitários, que nos devem servir de lições e jamais serem apagadas da memória para que jamais voltam a acontecer.
Portanto, sim, precisamos avançar sempre mais, mas no sentido de fortalecer e consolidar nossa ainda jovem e frágil democracia, porém, com cuidado para que aquilo que pareça ser avanço hoje não se configure em retrocesso amanhã. Aprender a caminhar, porém, com um passo a cada vez a fim de que a pressa da corrida não nos castigue com um tombo de tal intensidade que venhamos a nos arrepender da caminhada.
Edson Luís Kossmann
Dallagnol Advogados Associados