Das manifestações que brotaram das ruas nos últimos dias ficou visível a insatisfação popular provocada por um mal-estar que atinge a sociedade brasileira. Esse mal-estar pode ter sua gênese (entre outros motivos) no que Nietzsche chamou de uma mistura de classes absurdamente repentina (não coloco aqui esse fenômeno num sentido negativo, pelo contrário).
Grande parte da população, que era identificada como classe baixa (classes D e E), migrou, em um curto período de tempo, para patamares da classe média (classe C). Atualmente – por uma série de mudanças socioeconômicas que ocorreram nos últimos anos, como aumento do acesso ao crédito, elevada taxa de empregabilidade e distribuição de renda – a população brasileira classificada como classe média já representa mais da metade. Essa mudança no perfil socioeconômico também produziu uma mudança nos perfis sócio-político e cultural dessas mesmas pessoas.
Uma das implicações imediatas é o fato dos espaços públicos (mesmo os privados), antes ocupados por determinado número de pessoas da classe média, terem um significativo e imediato aumento de “ocupação” sem os correspondentes aumentos de espaço. Assim, mais pessoas ocupam os mesmos espaços antes tomados por menos pessoas. Isso é visto nos aeroportos, nos espaços de lazer, na cultura, nos esportes e na educação, e principalmente, nas ruas das cidades, que tiveram um considerado aumento de veículos, sem o mesmo aumento na infraestrutura.
A classe média tradicional, que ocupava esses espaços (como sendo seus), passou, então, a ter de dividi-los com a nova classe média, que também passou a se entender portadora do direito do uso desses mesmos espaços. A antiga classe média passou a se sentir “incomodada” com a repentina presença dessa nova classe em ascensão, no seu espaço (de)limitado.
E mais: a nova classe média que conseguiu adquirir sua casa, seu carro, trocar os eletrodomésticos, comprar computador, telefone celular e até mesmo viajar de avião e disfrutar de pacotes turísticos, passou a compreender que “pode”, que tem direitos que antes “não tinha”. E, se pôde o que já conquistou, pode mais!
A gama de reivindicações que surgiu das ruas pode ser dividida em duas linhas muito claras: uma que busca o efetivo atendimento dos direitos prestacionais que o Estado se comprometeu em suprir ao torná-los constitucionalmente exigíveis: saúde, educação (os mais visíveis), segurança pública, meio ambiente ecologicamente equilibrado etc. A outra linha refere-se à questão da legitimidade e da representatividade política. Como um mantra, ecoou das ruas o grito de “não me representa”.
Embora essa clara cisão entre a linha do dever prestacional do Estado e a da crise de representatividade, a primeira é, em certo aspecto, consequência da segunda. Por isso, urge a discussão séria e responsável (sem maniqueísmos) sobre a necessária reforma político-eleitoral que, embora algumas louváveis iniciativas, é infinitamente protelada pelo Congresso Nacional.
Temas como a forma de financiamento das campanhas eleitorais (público, privado ou misto), voto obrigatório, voto distrital, voto em lista, candidaturas avulsas (sem partidos), a eleição de suplentes de senadores (ou mesmo a necessidade ou não do Senado Federal, com a possibilidade de um Congresso unicameral), as famosas emendas parlamentares (que embora não seja objeto direto de regras eleitorais, produzem um evidente resultado nefasto que privilegia sempre as candidaturas à reeleição dos parlamentares nos mandatos – que possuem verbas oficiais para distribuírem as suas bases – em detrimento de demais candidatos), a quantidade de reeleições possíveis para o mesmo parlamentar etc.
Essas questões precisam urgentemente entrar na pauta de debate da sociedade (e do Congresso), não podendo ficar a mercê de discussões intermináveis se as reformas devem vir através de plebiscito, referendo ou outra forma. A forma (embora importante) é o instrumento que deve ser usado, não devendo ser motivo de inviabilização do conteúdo (a não ser que se use estrategicamente a discussão da forma para esvaziar a da própria reforma).
Portanto, se a discussão sobre os instrumentos a serem usados se prolongar por muito tempo, é grande o risco do paciente (cuja paciência já se encontra no limite) não suportar a espera e, quando a decisão finalmente acontecer, a “operação” pode ocorrer tarde de mais.
Edson Luís Kossmann
Dallagnol Advogados Associados