As demandas sociais que a Constituição brasileira delegou competência e responsabilidade ao Estado resolver, e cuja fonte de recursos para atendê-las são os tributos pagos pelo cidadão, são inúmeras: saúde, educação, habitação, saneamento, segurança pública etc.
Ultimamente, outra demanda orçamentária tem sido agregada: os chamados precatórios judiciais (forma que os Municípios, Estados e União – utilizam para o pagamento dos valores em que são condenados nos processos judiciais).
O Supremo Tribunal Federal (STF) julgou, há poucos dias, ser inconstitucional a Emenda Constitucional nº 62, que admitia que o pagamento dos precatórios pudesse ser feito de forma parcelada, considerando a receita corrente líquida do ente estatal devedor, comprometendo de 1% a 2% de seu orçamento.
A EC 62 era polêmica. Permitia que o parcelamento pudesse se estender para até 15 anos e, por isso mesmo, alguns a denominaram de “PEC do calote”. Para outros, a mesma Emenda Constitucional era positiva, pois, mesmo com a possibilidade do pagamento dos precatórios a longo prazo, regulamentou, dentro dos limites do possível, aquilo que não tinha regulamentação alguma.
As decisões do STF devem ser respeitadas e cumpridas – não porque aquela Corte tem o direito de errar por último (como entendem alguns), mas porque é a mais alta corte da República e, portanto, não há mais a quem recorrer, por isso, o último dito do STF está dito e cumpra-se. Contudo, isso não tira o direito de discuti-la e criticá-la, se for o caso. A submissão às discussões e críticas é ainda maior em decisões cujo resultado têm reflexos não somente para uma pessoa, mas para o conjunto da sociedade.
Em relação à decisão específica, algumas questões jurídicas poderiam ser levantadas à discussão, como, por exemplo, em relação a um dos principais argumentos do voto majoritário de que os dispositivos inseridos na Constituição pela EC 62 estariam a desrespeitar a razoável duração de um processo judicial. Questiona-se: qual é a razoável duração de um processo? Quem define essa duração razoável? Em que parâmetros? Qual é a régua que mede o prazo razoável de um processo, ou vai depender do “entendimento” de cada juiz? Se um processo judicial não tiver o tempo entendido por razoável respeitado, quem responderia por isso? E mais: o pagamento dos precatórios seria parte do processo judicial, ou seria da esfera administrativa do ente público condenado – já que depende diretamente do orçamento do mesmo? Cabe a reflexão.
Muitos comemoraram aquela decisão, classificando-a de vitória da cidadania, contra o calote; outros, por sua vez, questionam se não se trata de uma “vitória de Pirro”: o que se fará com o “espólio” da vitória. Restam, ainda, algumas questões práticas a ser respondidas: como fica a situação? Como serão pagos os precatórios se da forma como estavam sendo era inconstitucional? Deverão ser pagos imediatamente? Com que recursos, se é sabido que “o cobertor é curto”?
Não há respostas prontas, devendo estas serem construídas da forma mais justa possível, porém, o que se verifica é que, mais uma vez, o Judiciário volta a decidir aquilo que não foi resolvido pelos outros Poderes, ou (no presente caso) aos olhos do Judiciário, resolvido de forma inconstitucional.
Novamente, ocorre a judicialização de assuntos que deveriam ser resolvidos pela política, ou seja, pelo conjunto da sociedade diretamente ou por meio de seus representantes.
Decidir se um percentual maior ou menor deve ser destinado à saúde, à educação, ao saneamento, à construção de presídios ou ao pagamento de precatórios não é função do Judiciário e sim dos Poderes relacionados à política e administração do Estado: Legislativo e Executivo. O deslocamento da decisão dessas questões para o Judiciário revela a fragilidade de nossa democracia.
A judicialização da política (nome dado a esse fenômeno) revela o quanto a nossa democracia ainda está engatinhando e, por isso, entendem alguns que ela precisa ser tutelada pelo Judiciário.
Sob outro olhar, o fortalecimento da democracia pressupõe, entre outras coisas, um clareamento dos limites divisórios entre as questões que devem ser submetidas ao Judiciário com aquelas que devem ser mantidas no campo das discussões e decisões políticas. Isso é fundamental, porque é esse o campo (da política) por excelência para as lides do exercício democrático.
Democracia pressupõe soberania popular. O exercício da cidadania, a prática do poder soberano também significa assumir os riscos e responder pelas decisões. Mas exercê-la. Os problemas da democracia só se resolvem com mais democracia. Somente assim poderemos ter esperança de que um dia, o poder venha a ser efetivamente emanado do povo, conforme “escrevemos” em nossa Constituição.
Edson Luís Kossmann
Dallagnol Advogados Associados